A dimensão ética da cidadania e do voluntariado
Por Reinaldo Bulgarelli, educador, consultor, voluntário, professor, palestrante, autor ou coautor de livros em suas áreas de atuação: direitos humanos, sustentabilidade, responsabilidade social, voluntariado, investimento social, diversidade, equidade e inclusão.
Saber quais são as motivações e causas apontadas pelas próprias pessoas voluntárias é um encontro com a diversidade que nos caracteriza como pessoas e a diversidade de motivações e causas que abraçamos. Mas, e o propósito? É também tão plural quanto as motivações e causas? Neste ponto, precisamos refletir sobre o que é voluntariado.
Utilizo como conceito de voluntariado a seguinte ideia: “A pessoa voluntária transcende sua condição cidadã. Em gesto de total liberdade, por vontade própria, por entender que é fundamental para si e para a comunidade, envolve-se numa ação solidária e transformadora. Para alcançar os objetivos a que se propõe, a pessoa voluntária disponibiliza o seu tempo, seus conhecimentos, seus valores, suas habilidades, sua energia, seus recursos financeiros, para pessoas, situações ou causas que tenham total sintonia com o projeto de humanidade expresso na Declaração dos Direitos Humanos e suas atualizações.”
Escrevi isso no início dos anos 2000, quando estávamos realizando um grande esforço para ampliar a cultura de voluntariado no País. Entendo que conseguimos, apesar do muito que falta para sermos mais voluntários, termos mais ações práticas de voluntariado, mais organizações acolhedoras de voluntários e mais qualidade na intervenção na realidade. É outro tema para o qual muitas pessoas se dedicam.
Um divisor de águas no mundo entre antigas práticas de voluntariado e as atuais, no meu entender, foi a combinação planetária que fizemos, como humanidade, no final dos anos 1990. A ONU – Organização das Nações Unidas nos reuniu, pessoas, organizações e estados, para criarmos e colocarmos em prática as Metas do Milênio. Hoje temos os ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, pensando na construção de uma realidade mais digna para todas as pessoas, sem deixar ninguém para trás, até 2030. Nossas motivações pessoais para o voluntariado, que passam por questões religiosas, políticas, visões de mundo das mais variadas, à esquerda ou à direita, encontram nos ODS algo em comum a ser compartilhado.
Ser voluntário, assim, é agir para além do que é esperado de nossa cidadania, da obrigação que temos no dia a dia, em tudo que somos e fazemos, para que esse projeto de mundo, que tem por base direitos humanos, se concretize nos atuais ODS. A direção é uma só e visa garantir que a vida possa se expressar com dignidade num mundo sustentável. A dimensão ética da cidadania e do voluntariado está dada.
Cidadania é a obrigação de perceber-se parte numa rede de relações interdependentes, praticando, beneficiando-se e ampliando direitos que tornam a coletividade melhor. O voluntariado deve ser também prática de cidadania, apesar de ir além do esperado, por olhar o todo, por fazer a parte, mas de olho no mundo melhor que cada gesto está construindo. Se estamos numa rede de relações interdependentes, voluntariado não age para ’tapar buraco‘, fazer porque outros não fazem, fazer para que outros não façam, tudo isso enquanto o mundo melhor não surge de algum milagre. O voluntariado, quando atua na direção do desenvolvimento sustentável, já é o mundo melhor acontecendo!
Na medida em que as pessoas conseguem se articular em torno de uma agenda comum, algo de diferente já está acontecendo. Antes mesmo de transformar a realidade, as pessoas se transformam ao se unirem em torno do bem comum e na colaboração, sabendo que suas ações estão interligadas e compondo um propósito compartilhado de impactar positivamente o mundo. Transformar transformando-se é o que acontece já no primeiro passo de alguém na direção do mundo, para além do próprio umbigo, do projeto de vida individual, do exercício obrigatório da cidadania em todas as relações e dimensões da vida.
Voluntários são, antes de tudo, pessoas que querem resolver as coisas, tirar problemas do caminho para deixar a vida fluir. E a vida é plural e compartilhada. Raramente, vamos encontrar um voluntariado solitário e silencioso. Mesmo quando individual, não é isolado, desarticulado e a comunicação, não o silêncio, é que gera o senso de pertencimento a algo maior. Se a pobreza e a desigualdade chamam mais a atenção de muitas pessoas voluntárias, motivos não faltam para isso, mas a dimensão ética presente nesta visão de trabalhar pelo desenvolvimento sustentável gera a compreensão de que tudo faz sentido. Atuar no campo ambiental, educacional, da ciência, da saúde, das artes e cultura, com gente pobre ou gente rica, é tudo parte do mesmo esforço para tornar o mundo mais sustentável para todas as pessoas.
Quando um valor pessoal não dialoga com a ideia de um mundo melhor para TODAS as pessoas, contrariando o que está no artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos – Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos – há um problema para essa pessoa que quer ser voluntária. Não há voluntariado que não se comprometa com essa combinação básica, estruturante, que fizemos em 1948. Pode ser qualquer tipo de ação, mas não será voluntariado se não respeitar a vida e, assim, todas as pessoas em sua diversidade tão rica e enriquecedora.
Se a motivação inicial não levava em consideração um propósito tão maior do que o simples gesto de dar o primeiro passo em direção ao mundo, com certeza o que fará ficar, fazer e, mais que isso, dizer-se uma pessoa voluntária. Veja que as pessoas dizem que SÃO voluntárias e não que fazem voluntariado. É a pluralidade de motivações e causas em torno do propósito maior de promover o desenvolvimento sustentável que torna o voluntariado uma prática tão bonita e essencial para o mundo.
A Pesquisa Voluntariado no Brasil 2021, em sua terceira edição, legitima o trabalho de milhares de voluntários na construção de um Brasil melhor, tanto no presente, quanto para as gerações futuras.
Este artigo integra uma série de conteúdos escritos à convite dos realizadores da Pesquisa Voluntariado no Brasil 2021, com intuito de analisar e enriquecer os achados do estudo. Não nos responsabilizamos pelas opiniões e conclusões aqui expressadas.